sábado, 26 de março de 2011

Fragmentos de Adriana

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Fragmentos de Adriana - Parte IV (Hortelã & Canela)

A lâmina afiada da faca reluzia à luz daquele sol matinal de um domingo de outono que entrava pela janela da cozinha e formava desenhos na parede do outro lado enquanto eu cortava pedaços de carne e deixava-os ao lado. O aroma do alho impregnava o ambiente, mesclado com café e carne fresca. Ingredientes organizadamente separados e espalhados pela mesa, enquanto eu manipulava carnes e legumes para o almoço.

O tempo corre sem percebermos. Alguns anos vazios passaram-se sem Adriana. Sem quem? Não sei. Já tinha esquecido. Tinha esquecido dela e de mim naquele período confuso, talvez convulso, em que me entreguei de olhos fechados ao sabor das vontades do destino, sem me preocupar muito com as consequências das minhas atitudes.
Durante esse tempo, meu amor por Adriana foi doentio como nunca, me matava lentamente e de forma dolorosa. Eu tratava Adriana como um tumor maligno, e tínhamos uma espécie de acordo mórbido e silencioso: Se ela me mantivesse vivo, eu lhe manteria amada. Me matasse e passaria o resto de seus dias sem a lembrança de ter alguém desejando-lhe. Triste constatação, mas um contrato de tal dimensões realmente foi necessário.

Tirei as folhas de alguns ramos de hortelã e as cortei em pequenos pedaços. Quando joguei na panela, entre os pedaços de carne e o alho já dourado, o aroma fresco e adocicado da erva invadiu o ambiente, criando uma atmosfera agradável e aconchegante.

Adriana, como eu soube depois, tivera um caminho diferente depois de ter me mandado embora. Fez as viagens que tanto queria, conheceu uma boa parte do mundo (" - Pa - tchou - ly. É da Indonésia"), enquanto eu traçava o caminho apartamento-bar-apartamento. Conheceu pessoas, talvez umas mais que outras (" - Moramos um tempo juntos, mas era mais a minha necessidade de não ficar sozinha. Eu precisava de abrigo, e ele estava lá. Só isso"). Eu? Bem... Conheci todas as mulheres possíveis e nenhuma ao mesmo tempo.

Lembro que naquela manhã a televisão me contou que Adolfo Casares havia morrido. Casares nunca quis morrer. Ele sempre teve medo da morte e não escondia isso. Fiquei triste com aquela notícia. Daí o telefone tocou. Cassares partia e Adriana voltava. Cômico, não? Não. Sem muitas explicações, marcamos um almoço. E cá estou preparando-o, entre hortelãs e alho dourado.

A campainha tocou, abri a porta. Nossa... Ela continuava linda, embora agora parecesse mais segura. As linhas que o tempo marcara em seu rosto lhe davam mais polidez e credibilidade. Os cabelos continuavam pretos como sempre, mesmo que fossem pintados. Andava bem vestida, tinha um perfume suave. Era Adriana, mesmo que não fosse, mesmo depois de alguns anos e muitos rancores, parecia tão familiar como se tivesse apenas levantado para buscar algo na cozinha, e agora voltava mais velha e mais linda do que nunca.

- Oi. - Ela disse, tímida.
- Como vai? Entra! - Um abraço distante e demais protocolos sociais.

[...]

- Que delícia! Como tu fez?

- Quando o alho ficar dourado, larga um pouco de hortelã junto. mas não muito antes, pra ela não queimar.

- Fica ótimo!

- Mas se pôr demais, fica enjoativo.

[...]

- Sabe... Eu nunca realmente fui feliz depois disso tudo.

- Eu sei. Eu também não.

- Foi como se eu tivesse certeza que era aquilo que eu queria, mas depois percebesse que, talvez, poderia ter sido diferente. Sabe? Na verdade, não me arrependo. Pára, não faz essa cara. Mas eu precisava disso. Pra aprender a errar, talvez. Pra aprender a ser sozinha. Acho que isso me fez crescer, por isso a experiência é válida. Tu não acha? Olha quanta coisa a gente aprendeu. Não teríamos adquirido todo esse conhecimento se isso não tivesse acontecido assim.

Como ela podia?

- De fato, Adriana, aprendemos muito. Eu aprendi muitas coisas que preferia ficar sem saber. Eu aprendi qual é o cheiro desse apartamento quanto tu não está aqui. Aprendi como me virar sozinho. Aprendi como não ter ninguém por mim e como não me importar com ninguém. Aprendi a não amar por retribuição, mas por necessidade de ficar vivo. Aprendi quantos gramas são necessários para matar alguém. Aprendi quanto tempo a gente aguenta sem comer, sem chorar, sem ter carinho.

- Não fala assim, tu sabe que...

- Sei. Eu sei muito bem, Adriana. Melhor do que tu imagina. Não fala comigo como se isso tivesse sido construtivo para nós dois. Desculpa, mas eu não tive a mesma sorte.

- Eu sei... Me desculpa por isso. Eu me sinto mal em saber, e sempre soube. A questão é justamente essa. Nós dois sabemos bem. E agora, o que se faz? Como nós usamos o que sabemos?

- Acho que não usamos, Adriana. Não um com o outro, pelo menos.

Adriana se calou e eu vi o que jamais tinha imaginado durante esse anos todos: duas lágrimas pequenas e brilhantes, duas pérolas de dor brotando em seus olhos tristes. Como eu queria pular por cima da mesa e dizer "fica fica fica fica eu quero quero sim tu sabe que eu quero e quero sim fica comigo eu quero de volta", mas não dava. Não era certo, não depois de tudo. Sim, eu havia aprendido algo durante esse tempo todo. Que quando dois caminham em direções opostas, não é tão fácil voltar pro mesmo caminho. Todas as lembranças passavam na minha cabeça, e quando segurei a mão de Adriana por cima da mesa, ela entendeu o que eu sentia e concordou em silêncio. Pegou, com o garfo, uma folha de hortelã que havia escapado do fio da faca e olhou para ela com ternura, depois olhou pra mim. Eu sabia o que ela estava pensando. lembranças de quando cozinhávamos juntos e conversávamos sobre as propriedades dos ingredientes.

Olhou-me com ternura:

- O que vai ser agora? - perguntou.

Pensei que dali em diante eu seria doce pra ela, seria seu refresco quando o amargo do mundo lhe tomasse. E que ela seria doce pra mim, mas impossível lembrar dela sem que alguma coisa doesse, como um ardido na língua.

- Hortelã e canela. - Eu disse.

- Hortelã e Canela. - Ela disse.