terça-feira, 24 de abril de 2012

Como era antes.

Depois que o sol entrou pela janela que eu tinha deixado aberta na noite anterior e bateu direto na minha cara, não consegui mais dormir. Não bastava minha dor de cabeça, ainda tinha essa porra de sol pra encher o saco. Levantei devagar e vesti a primeira calça que achei jogada pelo chão. Parei diante da janela e olhei pra baixo. De cima, tudo parecia tranquilo. E de fato é. Quando não se está perto, é impossível ter noção do que acontece. Tudo parece sereno. Queria ver quem tinha coragem de enfiar a cara no meio da multidão que fervilhava lá embaixo, na calçada, e segurar no peito aquela insanidade, aquela manada enfurecida que disparava de e para todos os lados. Eu, tomado pelo comodismo que apredera a pouco, decidi fechar a janela e ficar em segurança. Já tinham me ensinado que era bem melhor assim.
Quando cheguei na cozinha, tive vergonha de mim mesmo. Como as coisas foram parar naquele estado? Em que momento eu desliguei o piloto automático e simplesmente parei de me importar com a casa e todo o resto? Melhor não pensar, a menos que quisesse mesmo lembrar a resposta.
Sobre a mesa atrolhada de restos de tudo que se pode imaginar, identifiquei um sanduíche de queijo que, pelo cheiro, estava prestes a ser catalogado como novo ser vivo. Joguei pra Lua, que se afastou e me olhou com desprezo. Foda-se a gata, pensei.
Em cima da pia, precisei decidir entre um café frio e uma cerveja quente. Se houvesse cianeto no cardárpio, a escolha seria mais óbvia. Atravessei aquilo que parecia um cenário de guerra e fui pro banheiro, liguei o chuveiro e me sentei no chão, de roupa mesmo, sentindo a água gelada cair na minha cabeça. De olhos fechados, senti o frio tomar conta do meu corpo, como se milhares de agulhas perfurassem minha pele até eu estar sedado, anestesiado. Logo a água e a cerveja me deixaram num leve e agradável estado de torpor. Equanto bebia, me imaginava sob uma cachoeira, longe de tudo, sem ninguém por perto. Podia quase sentir o cheiro do mato em volta de mim, o vento audível nas folhas. Ilusão. Deixei as roupas no chão do banheiro, me enrolei num cobertor e sentei no chão da sala vazia. Lua me rondou e miou alto. "Também tô com fome, querida". Me olhou e miou de novo, mais alto. "Também sinto, Lua. Mas agora somos só nós dois outra vez. Como era antes".