quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O mergulho da águia





A águia precipitou-se penhasco abaixo, saltando com força da rocha onde edificara seu ninho. Após os segundos atormentantes que precedem o mergulho, pode-se ver seu corpo rasgando o ar em direção ao céu, o bico forte apontado para cima.Como a fênix que renascia das cinzas, a águia deslizava em direção ao céu após o mergulho quase fatal.

Era impossível manter a ascenção daquela forma por muito tempo, mas ela sabia como proceder. Traçava linhas curvas no céu, indo e voltando, e, assim, ganhando cada vez mais altura.Elevava-se entre as nuvens, onde o ar se tornava escasso. Ascendia no horizonte longínquo daqueles que olhavam sem ver, e viviam sem entender as razões que levavam a águia a querer atingir o manto azul que cobria todas as coisas. Manto este que era alvo de sua visão perspicaz e aguçada, e que não era impossível de se alcançar, para aqueles que contassem com um par de asas fortes que batiam de forma agressiva, mesmo sendo uma violência vagarosa.

Havia determinação nos olhos e em cada rufar das asas do pássaro.Conhecia o caminho, mas os olhos abertos demonstravam sua obstinação em atingir o ponto mais alto do céu e de si mesma. Vencia cada corrente de ar de forma heróica, sem nunca deixar de subir.

Minutos depois, alcançara o ápice e gozava de vencer o desafio. Agora, planava calma perto das nuvens, o mais próximo que se podia chegar. Era um ponto quase invísivel no azul celeste. Era um ser quase invisível em meio a tantas gentes e coisas. Era o que queria: Estava em sintonia com sua essência, respirava e se mantinha no mesmo ar, estava entregue à sua natureza e se sentia o próprio céu em que se deitava.

Após nadar tranquilamente na imensidão azul sem paredes ou limitações, lançou-se a bater as asas novamente, tentando ir ainda mais alto. Impossível, àquela altura e com sua situação física. Mas tentara, e havia subido mais um par de metros. Do alto do universo e de sua consciência, fechara os olhos e lançara-se outra vez em um mergulho, mas agora sem pressa para retornar. Juntou as asas ao corpo, mas expandiu seu coração por quilômetros.Entregava-se sem medo ao abraço que não viria, e seu único objetivo era tornar-se parte do chão que a aguardava.

O silêncio imperou pelas montanhas naquele momento, como se cada criatura viva entendesse a agonia da águia e lhe prestasse seus respeitos. As pedras não rolaram, o vento não soprou e nem sequer beijou as folhas do eucalipto naquela manhã. As raposas permaneceram no ninho, e os coiotes uivaram em um tom triste, de dentro de suas tocas.O pai não soube responder quando a criança perguntou, vendo a águia lançar-se rumo ao chão, naquele mesmo longínquo horizonte outrora citado. O pai também não soube por que lhe correra uma lágrima naquela manhã tão comum.

A criança ficou sem resposta, mas havia entendido alguma coisa. Havia sentido a águia lhe fitando por um breve instante com seu olhar microscópico, tão mais potente que o da criança qua não vira, mas entendera.E ouviu as palavras da velha águia cansada ecoando entre os penhascos por tantos anos depois, naquela mesma região. Na mesma região onde ele, um dia, encontrara um ninho encravado em um rochedo, e decidira tentar ir mais alto.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Fragmentos de Adriana - Parte III

No bar, todos já comentavam sobre meus encontros com Clarice, todas as noites. Chegávamos, um sempre esperando o outro, e passávamos a noite a conversar. Com o tempo, passei a prestar cada vez mais atenção em seus olhos castanhos, seus cabelos pretos cortados acima do ombro e seu sorriso grande. Após horas, já madrugada adentro, Clarice ia embora e eu continuava bebendo até que o bar fechasse. Sendo assim, niguém estranhou quando, de repente, passamos a ir embora juntos. Nos braços de Clarice encontrei um mundo diferente, uma realidade talvez diferente daquela que eu teria imaginado em meus devaneios ébrios.
Clarice era uma criança querendo desvendar o mundo, enquanto Adriana era uma mulher que partira em busca de mais. Clarice sonhava alto, fazia pose. Bebia pouco e não compartilhava os cigarros que eu fumava enquanto ela me ouvia falar sobre Lou Reed, Nietzsche ou a fossa ilíaca de Álvarez de Azevedo. Absorvia tudo com seus imensos olhos castanhos, que pareciam querer me engolir de vez em quando.

- Só pão e leite? - Me perguntava
- Um de cada por dia - fechava os olhos e disparava o gatilho, sentindo todo meu aparelho respiratório arder - Mas frequentemente ele abdicava disso pra poder comprar livros. Vai?
- Não.

Clarice nunca ia. Nem com pó, nem com ácido, nem com erva. Ia comigo, quando depois de falar, recitar, compor sonetos em homenagem ao seus malditos olhos castanhos, partia pra cima dela como um animal durante o ataque, e ali, onde estivesse, tinha seu corpo de mulher em recém formação. Quando seu rosto de menina se encrispava em um orgasmo discreto, sentia falta de Adriana e suas unhas na minha carne, sua explosão de malícia sobre mim. E quando deitava ao meu lado, eu procurava o lado oposto, onde poderia fingir que não havia ninguém ao meu lado, que minha cama, meu sofá, meu tapete, minha cozinha, meu corredor, meu banheiro ou meu elevador continuavam tão vazios como quando Adriana foi embora.
Com o passar do tempo, cada vez mais Clarice conquistava minha intimidade, e cada vez mais via vestígios de Adriana em minha vida. Não precisou muito para ligar os pontos e, com aquela dor de quem descobre um segredo ruim, ficava cara a cara com a realidade.

Dos diários de Clarice:

Duro abrir os olhos e ver que aquilo em que depositamos nossa devoção simplesmente não corresponde à expectativa que tivemos. Eu não faço parte da vida dele. É como um parafuso que, por ser tão pequeno, não dá sustentabilidade à peça. Deus, o que eu fiz com a minha vida? Eu que queria tudo, e o que eu tinha era ao mesmo tempo tão pouco e tão necessário, de repente tenho tão muito ao mesmo tempo em que recebo tão menos daquilo que preciso.
Olho para trás e vejo o passado. Sinto, com dor, que errei. Talvez tenha sido necessário para que eu pudesse saber quem sou, o que sou. Hoje eu sei a que eu pertenço. Junto minhas mãos ao peito enquanto ele dorme ao meu lado, e faço minhas orações e choro baixinho, imaginando se meu lugar estará ainda guardado caso eu decida voltar. Penso no meu amor, e tudo que desejo é que ele não tenha feito o que este ao meu lado faz noite após noite, tentando enfiar um amor fracassado entre as pernas de alguém que não se define.
Mas sei que não posso aguentar muito mais tempo. Ocupo o lugar de um fantasma que se chama Adriana, que ele chama agora enquanto dorme. Sei que sou um fantasma também. Temo voltar. Temo não ser bem recebida. Temo não encontrar aquele amor sincero, puro e tão bonito que ele tinha por mim. E explicar o que? Dizer o que? Não se pode simplesmente voltar e fingir que nada aconteceu. Também não se pode continuar vagando a esmo quando se sabe qual é o lugar certo.


Acordei naquela manhã e Clarice havia sumido da minha vida com a mesma suavidade com a qual havia aparecido. Questão de tempo até que apareça outra, pensei. Meu café da manhã foi no único pub da cidade que permanecia aberto até aquela hora. Um café preto e vinte marlboros. Minha cabeça ainda doía da última bebedeira so som do velho Johnny Cash, e o silêncio do bar valia mais que ouro pra mim naquela hora.
"E Clarice?", vocês devem se perguntar. Não sei. Foi embora, assim como Cristina, Fabíola, Amanda e toda e qualquer outra mulher, inclusive aquelas cujo nome eu sequer lembro, que cruzaram meu destino nesses anos que se passaram desde que Adriana foi embora. Talvez cada uma delas merecesse uma história, ou uma canção. Nunca toquei ou escrevi para nenhuma delas. Vivi-as intensamente, e fiz de cada uma delas um pequeno pedaço da minha destruição.

domingo, 6 de fevereiro de 2011


Não consigo pensar em muita coisa.
Só sei que quero o sol inteiro dentro do meu peito.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Fragmentos de Adriana - Parte II

(para ler ao som de "A Quick One While He's Away" - The Who)


2.1 - Queda

Muitos poderiam afirmar que minha vida mudou no momento em que Adriana partiu em busca de algo maior que eu, maior que ela própria. Não acredito nisso. Embora nem eu mesmo possa dizer com certeza, acho mais provável que os dias seguintes tenham sido um período de transmutação. Eu fui de tudo e fui tão pouco... Longe do tempo e da razão, eu buscava algo em que acreditar por algumas horas, ao menos. Mas no que podemos acreditar, na cidade?
No santuário de concreto e metal, gargantas secas engoliam a fuligem que caía como neve das nuvens negras de fumaça. Longe do mar, esperanças eram ancoradas no fundo daquele oceano de asfalto.
É estranho, eu sei, mas consequências já não me importavam mais. Mergulhei na destruição e na irresponsabilidade logo na primeira semana. Dos vícios, não poupei nenhum. Não escolhi os menos perigosos. Noite após noite, os bares eram meu reduto, onde eu me encontrava no meio de gente que não me conhecia, nem fazia questão. Entretanto, todos sabiam. Era eu passar e perceber algo estranho nos rostos, uma ponta de pena, talvez deboche.
Adriana me deixara um legado. A sina de ser desprezado como um cão por pessoas de qualquer tipo. Esqueci o nome de Adriana alguns dias depois. Mudei minha casa, mudei minhas roupas, mudei minha vida. Antes de dormir, me sentia apagado. Chorava sem lembrar de quem.



2.2 - Remédio Amargo

Pedi a quarta dose de uísque com descaso (com já havia feito tantas vezes antes). O bar era um ambiente obscuro. Vermelho e marrom predominavam naquele cômodo enfumaçado. Seis ou sete mesinhas redondas com cinco lugares estavam distribuídas ao longo da parede coberta por quinquilharias de bandas e pôsteres vintage. Escolhi o lugar mais afastado para sentar, onde podia ver os olhos tristes de uma pin up pregada na parede. Vestia um corpete vermelho com meias compridas pretas. Tinha um cigarro na mão e algo que me chamou a atenção: Seu olhar era triste. De todas as pin ups espalhadas pelo bar, aquela era a única que não tinha um rosto sensual. Apoiando o o queixo no joelho direito, havia tristeza em seus olhos. Simpatizei com ela. Chamei-a carinhosamente de Joana.
Era madrugada, e a garotada alternativa infestava o bar. Menininhas gostosas com cabelo esquisito, rapazes mal saídos das fraldas fazendo pose de intelectual. Ah, aquela juventude da minha idade era tão diferente de mim. Eram cerejas, ainda. Eu já era azeitona, apesar de não ser mais que um par de anos mais velho. Enquanto todos apreciavam a arte, a música, a cultura do momento, eu me chapava e desejava que o mundo explodisse.
Já alterado pela bebida, levantei e caminhei, esbarrando no máximo de gente possível, em direção à jukebox. Trocados catados, música escolhida, voltei pro meu lugar e afundei os cotovelos na mesa. Joana continuava me olhando. Mas ao som dos primeiros acordes de Stand By Me, seus olhos já não eram os únicos que me buscavam.

"I won't cry! No, I won't
No, I won't share up a tear
just as long as you stand,
Stand by me

So darling, darling
Stand by me
Stand by me
Stand by me
Stand by me
Stand by me"

A menina em pé ao meu lado entoava a canção com sua voz de algodão e hálito de uísque e martini. Na mão, um manhattan com cereja.

- Adoro essa música. - Devia ter uns dezoito anos, dezenove no máximo.
- Música de velho, garota. - Ela riu. Sentou à minha frente sem que eu a convidasse. No instante em que curvou o corpo para sentar, avaliei aquela ninfeta na minha frente. Bundinha legal, peitinho bacana.
- Música boa não tem idade. Meu nome é Clarice. - Não pertencia àquele lugar. Era uma criança, ainda. Entrei no jogo pra ver onde dava.
- Marcos.

Drinques mais tarde, Clarice me contara um pouco a seu respeito. Viera do interior há pouco tempo, sentia-se oprimida pela mentalidade de cidade pequena. Pra trás, deixara uma vida sobre a qual não falava.

- Família?
- Não tenho.
- Namorado, marido?
- Vou buscar mais um manhattan, já volto.

Quando voltou, mudou de assunto. Perguntou de mim, falei sobre minha vida, que estava mudando algumas coisas. Perguntou de mulheres, desconversei. Era o jogo dela, poderia ser o meu também.
E na doçura da criança que partira em busca de algo maior, depositei tudo aquilo que havia sobrado de Adriana. Adriana queria mais. Para Clarice, eu era esse mais.



[CONTINUA]