sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Adormecendo

a dor
me
sendo.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Desabafo de alguém que escreve

“Escrever (es-cre-ver)
v.t.
Exprimir-se por sinais gráficos, caracteres convencionais: escrever seu nome.
Redigir, compor: escrever uma obra.
Ortografar: como se escreve essa palavra?
Corresponder-se, informar por carta: escrevo-lhe que aceito.
Sustentar, afirmar que: Bergson escreve que...
Fig. Assinalar, gravar: na fronte leva escrita a sua desonra.
Estava escrito, fórmula para expressar resignação.”

Sempre escrevi. Tudo bem, nem sempre, mas desde os cinco anos. E não apenas reproduzia signos gráficos ou produzia enunciados banais (“leite, pão, margarina, café e queijo”) ou objetivos (“mãe, deixe a porta aberta. Estou sem chave. Beijo). Pouco tempo depois de ter domínio daqueles desenhos que a caneta deixava no papel, e que diziam tanta coisa!, passei a escrever palavras que formavam frases que não relatavam exatamente fatos cotidianos. Falavam sobre coisas que não aconteciam. Se eu falasse, chamariam “mentiras”, mas, como eu escrevia, eram “contos”, “poemas” e coisas assim.

Escrevia muito, sobre várias coisas. E, de certa forma, tudo que eu criava me envolvia de uma maneira que já era difícil definir a realidade daquilo que eu escrevia. Era como se o papel fosse uma extensão de mim, uma vida que eu vivia quando a minha já não era suficiente. Era um refúgio, um inferno. Um paraíso e um barco em alto mar, que balançava na força das ondas e que resistia à fúria das tempestades. Escrever era tudo o que eu queria viver.

Das coisas que escrevia, às vezes gostava de algo. Elogios? Recebia muitos, mas nunca aceitei. Não pensava ser bom escritor, nem gostava de tudo que acabava caindo no papel. Às vezes, algum caía em meu agrado, mas não mais do que isso. Almejava, sim, melhorar naquilo que fazia. Escrever mais, melhor. Publicar, quem sabe? Enfim, sempre achei que estava no caminho certo, e sempre quis continuar escrevendo.

Quando comecei a estudar a teoria da literatura, foi como se recebesse um soco. Com declarações fortes, a professora afirmava :” Isso é certo, isso é errado. Isto é bom, aquilo é ruim. A literatura deve ser assim, não assim!”. Eu jamais ouvira falar sobre imagens sensoriais, mimeses, plurissignificação ou coisas semelhantes. Descobri que tudo o que eu tinha escrito naqueles anos não era bom. As pessoas gostavam porque não conheciam boa literatura.

Tentei mudar, juro. Por vezes tentei colocar nas histórias tudo aquilo sobre o que os teóricos falavam, mas foi impossível. Quando chegava no ponto final, tudo que estava ali era uma expressão pura de mim. Nada mais. Por mais que eu tentasse substituir o sentimento por racionalidade, o resultado era sempre a essência do que eu queria dizer. Pingava sangue.

Desisti. Não há um escritor em mim. Não um que possa ser levado a sério, ao menos. Meus escritos continuarão apenas relatando coisas simples, sobre o que eu sinto ou imagino sentir. Continuarão sendo extensões das vidas que não vivo.

domingo, 2 de outubro de 2011

domingo, 10 de julho de 2011

Gabriela

- Grandes merdas.

E foi assim que eu conheci Gabriela, quando, num ímpeto de pudor que eu bem sabia não ser meu, procurei o emissor dessa interjeição tão corriqueira, mas que, no momento, me pareceu demasiadamente inesperada. Então vi. Vi os cabelos castanhos aparados antes dos ombros estreitos de menina não crescida ainda. Vi a pele também castanha, indicando a composição mestiça daquele corpo pequeno e frágil. Mas acima de tudo, vi os olhos, do mesmo tom, com um brilho de sabedoria, astúcia e malandragem típica da idade.
Gabriela não era bonita, comparada às outras meninas da classe. Ao invés das roupas apertadas, acentuando curvas ainda em formação, Gabriela vestia calças jeans e uma camiseta larga, cor de rosa. Rosa choque, rosa forte. Gabriela ia tão além daquele rosto pequeno entre tantos corações pequenos.
Durante as aulas, a cabeça pairava longe das orações subordinadas... Gabriela tinha a alma tão grande que achava que o mundo não era capaz de lhe suportar. E foi assim que, ao lhe explicar pela terceira vez a importância (que eu nem acreditava mais) que tinham as orações subordinadas, que Grabriela soltou um "grandes merdas". Assim, sem querer. Mas sincero.
Corou e quase corei também, não estivesse tão acostumado a reações semelhantes. Mas vinda de Gabriela, a frase soava diferente. Soava como um apelo de uma alma aprisionada no subúrbio não asfaltado da cidadezinha de merda que sufocava sonhos. E concordei. Grandes merdas. Grandes merdas as subordinações para nós que já somos subordinados a tanta falta de esperança. Nós, que nos bastamos em sobreviver.
Naquele momento, Gabriela olhou em meus olhos quase sem notar, e eu vi, quase sem perceber, aquele brilho intenso que seus olhos, quase sem saber, deixavam escapar e que o coração, quase sem acreditar, dizia "falta pouco".

domingo, 26 de junho de 2011

Antologia Ventos Poéticos


"A poesia de cada dia vinda de todos os lugares. Como o vento que sopra e traz novas emoções, sentimentos, e desperta curiosidade. Às vezes apenas como uma brisa leve ao amanhecer. Às vezes como um tufão ao final da tarde anunciando tempestade. Os Ventos Poéticos vêm para manifestar o que há no âmago de cada ser; o que foi, o que é, e o que será melodia no assovio do vento em cada canto do mundo."



Igue dá um passo nessa história de escrever.

Na antologia, um poema inédito: VERTIGEM

sábado, 26 de março de 2011

Fragmentos de Adriana

Links:

Parte I
Parte II
Parte III
Parte IV (Hortelã & Canela)

Fragmentos de Adriana - Parte IV (Hortelã & Canela)

A lâmina afiada da faca reluzia à luz daquele sol matinal de um domingo de outono que entrava pela janela da cozinha e formava desenhos na parede do outro lado enquanto eu cortava pedaços de carne e deixava-os ao lado. O aroma do alho impregnava o ambiente, mesclado com café e carne fresca. Ingredientes organizadamente separados e espalhados pela mesa, enquanto eu manipulava carnes e legumes para o almoço.

O tempo corre sem percebermos. Alguns anos vazios passaram-se sem Adriana. Sem quem? Não sei. Já tinha esquecido. Tinha esquecido dela e de mim naquele período confuso, talvez convulso, em que me entreguei de olhos fechados ao sabor das vontades do destino, sem me preocupar muito com as consequências das minhas atitudes.
Durante esse tempo, meu amor por Adriana foi doentio como nunca, me matava lentamente e de forma dolorosa. Eu tratava Adriana como um tumor maligno, e tínhamos uma espécie de acordo mórbido e silencioso: Se ela me mantivesse vivo, eu lhe manteria amada. Me matasse e passaria o resto de seus dias sem a lembrança de ter alguém desejando-lhe. Triste constatação, mas um contrato de tal dimensões realmente foi necessário.

Tirei as folhas de alguns ramos de hortelã e as cortei em pequenos pedaços. Quando joguei na panela, entre os pedaços de carne e o alho já dourado, o aroma fresco e adocicado da erva invadiu o ambiente, criando uma atmosfera agradável e aconchegante.

Adriana, como eu soube depois, tivera um caminho diferente depois de ter me mandado embora. Fez as viagens que tanto queria, conheceu uma boa parte do mundo (" - Pa - tchou - ly. É da Indonésia"), enquanto eu traçava o caminho apartamento-bar-apartamento. Conheceu pessoas, talvez umas mais que outras (" - Moramos um tempo juntos, mas era mais a minha necessidade de não ficar sozinha. Eu precisava de abrigo, e ele estava lá. Só isso"). Eu? Bem... Conheci todas as mulheres possíveis e nenhuma ao mesmo tempo.

Lembro que naquela manhã a televisão me contou que Adolfo Casares havia morrido. Casares nunca quis morrer. Ele sempre teve medo da morte e não escondia isso. Fiquei triste com aquela notícia. Daí o telefone tocou. Cassares partia e Adriana voltava. Cômico, não? Não. Sem muitas explicações, marcamos um almoço. E cá estou preparando-o, entre hortelãs e alho dourado.

A campainha tocou, abri a porta. Nossa... Ela continuava linda, embora agora parecesse mais segura. As linhas que o tempo marcara em seu rosto lhe davam mais polidez e credibilidade. Os cabelos continuavam pretos como sempre, mesmo que fossem pintados. Andava bem vestida, tinha um perfume suave. Era Adriana, mesmo que não fosse, mesmo depois de alguns anos e muitos rancores, parecia tão familiar como se tivesse apenas levantado para buscar algo na cozinha, e agora voltava mais velha e mais linda do que nunca.

- Oi. - Ela disse, tímida.
- Como vai? Entra! - Um abraço distante e demais protocolos sociais.

[...]

- Que delícia! Como tu fez?

- Quando o alho ficar dourado, larga um pouco de hortelã junto. mas não muito antes, pra ela não queimar.

- Fica ótimo!

- Mas se pôr demais, fica enjoativo.

[...]

- Sabe... Eu nunca realmente fui feliz depois disso tudo.

- Eu sei. Eu também não.

- Foi como se eu tivesse certeza que era aquilo que eu queria, mas depois percebesse que, talvez, poderia ter sido diferente. Sabe? Na verdade, não me arrependo. Pára, não faz essa cara. Mas eu precisava disso. Pra aprender a errar, talvez. Pra aprender a ser sozinha. Acho que isso me fez crescer, por isso a experiência é válida. Tu não acha? Olha quanta coisa a gente aprendeu. Não teríamos adquirido todo esse conhecimento se isso não tivesse acontecido assim.

Como ela podia?

- De fato, Adriana, aprendemos muito. Eu aprendi muitas coisas que preferia ficar sem saber. Eu aprendi qual é o cheiro desse apartamento quanto tu não está aqui. Aprendi como me virar sozinho. Aprendi como não ter ninguém por mim e como não me importar com ninguém. Aprendi a não amar por retribuição, mas por necessidade de ficar vivo. Aprendi quantos gramas são necessários para matar alguém. Aprendi quanto tempo a gente aguenta sem comer, sem chorar, sem ter carinho.

- Não fala assim, tu sabe que...

- Sei. Eu sei muito bem, Adriana. Melhor do que tu imagina. Não fala comigo como se isso tivesse sido construtivo para nós dois. Desculpa, mas eu não tive a mesma sorte.

- Eu sei... Me desculpa por isso. Eu me sinto mal em saber, e sempre soube. A questão é justamente essa. Nós dois sabemos bem. E agora, o que se faz? Como nós usamos o que sabemos?

- Acho que não usamos, Adriana. Não um com o outro, pelo menos.

Adriana se calou e eu vi o que jamais tinha imaginado durante esse anos todos: duas lágrimas pequenas e brilhantes, duas pérolas de dor brotando em seus olhos tristes. Como eu queria pular por cima da mesa e dizer "fica fica fica fica eu quero quero sim tu sabe que eu quero e quero sim fica comigo eu quero de volta", mas não dava. Não era certo, não depois de tudo. Sim, eu havia aprendido algo durante esse tempo todo. Que quando dois caminham em direções opostas, não é tão fácil voltar pro mesmo caminho. Todas as lembranças passavam na minha cabeça, e quando segurei a mão de Adriana por cima da mesa, ela entendeu o que eu sentia e concordou em silêncio. Pegou, com o garfo, uma folha de hortelã que havia escapado do fio da faca e olhou para ela com ternura, depois olhou pra mim. Eu sabia o que ela estava pensando. lembranças de quando cozinhávamos juntos e conversávamos sobre as propriedades dos ingredientes.

Olhou-me com ternura:

- O que vai ser agora? - perguntou.

Pensei que dali em diante eu seria doce pra ela, seria seu refresco quando o amargo do mundo lhe tomasse. E que ela seria doce pra mim, mas impossível lembrar dela sem que alguma coisa doesse, como um ardido na língua.

- Hortelã e canela. - Eu disse.

- Hortelã e Canela. - Ela disse.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O mergulho da águia





A águia precipitou-se penhasco abaixo, saltando com força da rocha onde edificara seu ninho. Após os segundos atormentantes que precedem o mergulho, pode-se ver seu corpo rasgando o ar em direção ao céu, o bico forte apontado para cima.Como a fênix que renascia das cinzas, a águia deslizava em direção ao céu após o mergulho quase fatal.

Era impossível manter a ascenção daquela forma por muito tempo, mas ela sabia como proceder. Traçava linhas curvas no céu, indo e voltando, e, assim, ganhando cada vez mais altura.Elevava-se entre as nuvens, onde o ar se tornava escasso. Ascendia no horizonte longínquo daqueles que olhavam sem ver, e viviam sem entender as razões que levavam a águia a querer atingir o manto azul que cobria todas as coisas. Manto este que era alvo de sua visão perspicaz e aguçada, e que não era impossível de se alcançar, para aqueles que contassem com um par de asas fortes que batiam de forma agressiva, mesmo sendo uma violência vagarosa.

Havia determinação nos olhos e em cada rufar das asas do pássaro.Conhecia o caminho, mas os olhos abertos demonstravam sua obstinação em atingir o ponto mais alto do céu e de si mesma. Vencia cada corrente de ar de forma heróica, sem nunca deixar de subir.

Minutos depois, alcançara o ápice e gozava de vencer o desafio. Agora, planava calma perto das nuvens, o mais próximo que se podia chegar. Era um ponto quase invísivel no azul celeste. Era um ser quase invisível em meio a tantas gentes e coisas. Era o que queria: Estava em sintonia com sua essência, respirava e se mantinha no mesmo ar, estava entregue à sua natureza e se sentia o próprio céu em que se deitava.

Após nadar tranquilamente na imensidão azul sem paredes ou limitações, lançou-se a bater as asas novamente, tentando ir ainda mais alto. Impossível, àquela altura e com sua situação física. Mas tentara, e havia subido mais um par de metros. Do alto do universo e de sua consciência, fechara os olhos e lançara-se outra vez em um mergulho, mas agora sem pressa para retornar. Juntou as asas ao corpo, mas expandiu seu coração por quilômetros.Entregava-se sem medo ao abraço que não viria, e seu único objetivo era tornar-se parte do chão que a aguardava.

O silêncio imperou pelas montanhas naquele momento, como se cada criatura viva entendesse a agonia da águia e lhe prestasse seus respeitos. As pedras não rolaram, o vento não soprou e nem sequer beijou as folhas do eucalipto naquela manhã. As raposas permaneceram no ninho, e os coiotes uivaram em um tom triste, de dentro de suas tocas.O pai não soube responder quando a criança perguntou, vendo a águia lançar-se rumo ao chão, naquele mesmo longínquo horizonte outrora citado. O pai também não soube por que lhe correra uma lágrima naquela manhã tão comum.

A criança ficou sem resposta, mas havia entendido alguma coisa. Havia sentido a águia lhe fitando por um breve instante com seu olhar microscópico, tão mais potente que o da criança qua não vira, mas entendera.E ouviu as palavras da velha águia cansada ecoando entre os penhascos por tantos anos depois, naquela mesma região. Na mesma região onde ele, um dia, encontrara um ninho encravado em um rochedo, e decidira tentar ir mais alto.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Fragmentos de Adriana - Parte III

No bar, todos já comentavam sobre meus encontros com Clarice, todas as noites. Chegávamos, um sempre esperando o outro, e passávamos a noite a conversar. Com o tempo, passei a prestar cada vez mais atenção em seus olhos castanhos, seus cabelos pretos cortados acima do ombro e seu sorriso grande. Após horas, já madrugada adentro, Clarice ia embora e eu continuava bebendo até que o bar fechasse. Sendo assim, niguém estranhou quando, de repente, passamos a ir embora juntos. Nos braços de Clarice encontrei um mundo diferente, uma realidade talvez diferente daquela que eu teria imaginado em meus devaneios ébrios.
Clarice era uma criança querendo desvendar o mundo, enquanto Adriana era uma mulher que partira em busca de mais. Clarice sonhava alto, fazia pose. Bebia pouco e não compartilhava os cigarros que eu fumava enquanto ela me ouvia falar sobre Lou Reed, Nietzsche ou a fossa ilíaca de Álvarez de Azevedo. Absorvia tudo com seus imensos olhos castanhos, que pareciam querer me engolir de vez em quando.

- Só pão e leite? - Me perguntava
- Um de cada por dia - fechava os olhos e disparava o gatilho, sentindo todo meu aparelho respiratório arder - Mas frequentemente ele abdicava disso pra poder comprar livros. Vai?
- Não.

Clarice nunca ia. Nem com pó, nem com ácido, nem com erva. Ia comigo, quando depois de falar, recitar, compor sonetos em homenagem ao seus malditos olhos castanhos, partia pra cima dela como um animal durante o ataque, e ali, onde estivesse, tinha seu corpo de mulher em recém formação. Quando seu rosto de menina se encrispava em um orgasmo discreto, sentia falta de Adriana e suas unhas na minha carne, sua explosão de malícia sobre mim. E quando deitava ao meu lado, eu procurava o lado oposto, onde poderia fingir que não havia ninguém ao meu lado, que minha cama, meu sofá, meu tapete, minha cozinha, meu corredor, meu banheiro ou meu elevador continuavam tão vazios como quando Adriana foi embora.
Com o passar do tempo, cada vez mais Clarice conquistava minha intimidade, e cada vez mais via vestígios de Adriana em minha vida. Não precisou muito para ligar os pontos e, com aquela dor de quem descobre um segredo ruim, ficava cara a cara com a realidade.

Dos diários de Clarice:

Duro abrir os olhos e ver que aquilo em que depositamos nossa devoção simplesmente não corresponde à expectativa que tivemos. Eu não faço parte da vida dele. É como um parafuso que, por ser tão pequeno, não dá sustentabilidade à peça. Deus, o que eu fiz com a minha vida? Eu que queria tudo, e o que eu tinha era ao mesmo tempo tão pouco e tão necessário, de repente tenho tão muito ao mesmo tempo em que recebo tão menos daquilo que preciso.
Olho para trás e vejo o passado. Sinto, com dor, que errei. Talvez tenha sido necessário para que eu pudesse saber quem sou, o que sou. Hoje eu sei a que eu pertenço. Junto minhas mãos ao peito enquanto ele dorme ao meu lado, e faço minhas orações e choro baixinho, imaginando se meu lugar estará ainda guardado caso eu decida voltar. Penso no meu amor, e tudo que desejo é que ele não tenha feito o que este ao meu lado faz noite após noite, tentando enfiar um amor fracassado entre as pernas de alguém que não se define.
Mas sei que não posso aguentar muito mais tempo. Ocupo o lugar de um fantasma que se chama Adriana, que ele chama agora enquanto dorme. Sei que sou um fantasma também. Temo voltar. Temo não ser bem recebida. Temo não encontrar aquele amor sincero, puro e tão bonito que ele tinha por mim. E explicar o que? Dizer o que? Não se pode simplesmente voltar e fingir que nada aconteceu. Também não se pode continuar vagando a esmo quando se sabe qual é o lugar certo.


Acordei naquela manhã e Clarice havia sumido da minha vida com a mesma suavidade com a qual havia aparecido. Questão de tempo até que apareça outra, pensei. Meu café da manhã foi no único pub da cidade que permanecia aberto até aquela hora. Um café preto e vinte marlboros. Minha cabeça ainda doía da última bebedeira so som do velho Johnny Cash, e o silêncio do bar valia mais que ouro pra mim naquela hora.
"E Clarice?", vocês devem se perguntar. Não sei. Foi embora, assim como Cristina, Fabíola, Amanda e toda e qualquer outra mulher, inclusive aquelas cujo nome eu sequer lembro, que cruzaram meu destino nesses anos que se passaram desde que Adriana foi embora. Talvez cada uma delas merecesse uma história, ou uma canção. Nunca toquei ou escrevi para nenhuma delas. Vivi-as intensamente, e fiz de cada uma delas um pequeno pedaço da minha destruição.

domingo, 6 de fevereiro de 2011


Não consigo pensar em muita coisa.
Só sei que quero o sol inteiro dentro do meu peito.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Fragmentos de Adriana - Parte II

(para ler ao som de "A Quick One While He's Away" - The Who)


2.1 - Queda

Muitos poderiam afirmar que minha vida mudou no momento em que Adriana partiu em busca de algo maior que eu, maior que ela própria. Não acredito nisso. Embora nem eu mesmo possa dizer com certeza, acho mais provável que os dias seguintes tenham sido um período de transmutação. Eu fui de tudo e fui tão pouco... Longe do tempo e da razão, eu buscava algo em que acreditar por algumas horas, ao menos. Mas no que podemos acreditar, na cidade?
No santuário de concreto e metal, gargantas secas engoliam a fuligem que caía como neve das nuvens negras de fumaça. Longe do mar, esperanças eram ancoradas no fundo daquele oceano de asfalto.
É estranho, eu sei, mas consequências já não me importavam mais. Mergulhei na destruição e na irresponsabilidade logo na primeira semana. Dos vícios, não poupei nenhum. Não escolhi os menos perigosos. Noite após noite, os bares eram meu reduto, onde eu me encontrava no meio de gente que não me conhecia, nem fazia questão. Entretanto, todos sabiam. Era eu passar e perceber algo estranho nos rostos, uma ponta de pena, talvez deboche.
Adriana me deixara um legado. A sina de ser desprezado como um cão por pessoas de qualquer tipo. Esqueci o nome de Adriana alguns dias depois. Mudei minha casa, mudei minhas roupas, mudei minha vida. Antes de dormir, me sentia apagado. Chorava sem lembrar de quem.



2.2 - Remédio Amargo

Pedi a quarta dose de uísque com descaso (com já havia feito tantas vezes antes). O bar era um ambiente obscuro. Vermelho e marrom predominavam naquele cômodo enfumaçado. Seis ou sete mesinhas redondas com cinco lugares estavam distribuídas ao longo da parede coberta por quinquilharias de bandas e pôsteres vintage. Escolhi o lugar mais afastado para sentar, onde podia ver os olhos tristes de uma pin up pregada na parede. Vestia um corpete vermelho com meias compridas pretas. Tinha um cigarro na mão e algo que me chamou a atenção: Seu olhar era triste. De todas as pin ups espalhadas pelo bar, aquela era a única que não tinha um rosto sensual. Apoiando o o queixo no joelho direito, havia tristeza em seus olhos. Simpatizei com ela. Chamei-a carinhosamente de Joana.
Era madrugada, e a garotada alternativa infestava o bar. Menininhas gostosas com cabelo esquisito, rapazes mal saídos das fraldas fazendo pose de intelectual. Ah, aquela juventude da minha idade era tão diferente de mim. Eram cerejas, ainda. Eu já era azeitona, apesar de não ser mais que um par de anos mais velho. Enquanto todos apreciavam a arte, a música, a cultura do momento, eu me chapava e desejava que o mundo explodisse.
Já alterado pela bebida, levantei e caminhei, esbarrando no máximo de gente possível, em direção à jukebox. Trocados catados, música escolhida, voltei pro meu lugar e afundei os cotovelos na mesa. Joana continuava me olhando. Mas ao som dos primeiros acordes de Stand By Me, seus olhos já não eram os únicos que me buscavam.

"I won't cry! No, I won't
No, I won't share up a tear
just as long as you stand,
Stand by me

So darling, darling
Stand by me
Stand by me
Stand by me
Stand by me
Stand by me"

A menina em pé ao meu lado entoava a canção com sua voz de algodão e hálito de uísque e martini. Na mão, um manhattan com cereja.

- Adoro essa música. - Devia ter uns dezoito anos, dezenove no máximo.
- Música de velho, garota. - Ela riu. Sentou à minha frente sem que eu a convidasse. No instante em que curvou o corpo para sentar, avaliei aquela ninfeta na minha frente. Bundinha legal, peitinho bacana.
- Música boa não tem idade. Meu nome é Clarice. - Não pertencia àquele lugar. Era uma criança, ainda. Entrei no jogo pra ver onde dava.
- Marcos.

Drinques mais tarde, Clarice me contara um pouco a seu respeito. Viera do interior há pouco tempo, sentia-se oprimida pela mentalidade de cidade pequena. Pra trás, deixara uma vida sobre a qual não falava.

- Família?
- Não tenho.
- Namorado, marido?
- Vou buscar mais um manhattan, já volto.

Quando voltou, mudou de assunto. Perguntou de mim, falei sobre minha vida, que estava mudando algumas coisas. Perguntou de mulheres, desconversei. Era o jogo dela, poderia ser o meu também.
E na doçura da criança que partira em busca de algo maior, depositei tudo aquilo que havia sobrado de Adriana. Adriana queria mais. Para Clarice, eu era esse mais.



[CONTINUA]

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Fragmentos de Adriana - Parte I

Se Adriana não me amava, como eu acreditava enquanto ela me mandava embora de seu apartamento, soube fingir muito bem toda vez que seus olhos buscaram os meus e um sorriso se formara em seus lábios, os quais beijavam-me em acalento.
Tentava me fazer perceber algo que eu não conseguia enxergar, me dizia que faltava algo cuja ausência eu jamais sentira.
Enquanto ela falava e tentava diminuir o impacto, eu ia caindo e girando e caindo e girando naquele túnel que parecia não chegar ao fim e naquele estado catatônico, minhas pálpebras cerradas eram a tela onde eram reprisados os momentos ao lado daquela que agora me dizia que precisava de algo maior.

Eu caio.

De repente, caio. Despenco do meu autocontrole e já não tenho mais chão sob mim, ou oxigênio ao meu redor. Entre as figuras que formam o retrato da cidade em ebulição está um recorte que não encontra aconchego entre os espaços abertos na carne da moldura. Eu não me encaixava, eu não tinha espaço. Daquele momento em diante, eu era sobra. Talvez rolasse por aí até encontrar descanso em alguma caixa de recortes. Adriana me fez vítima de sua ânsia por liberdade quando quis voar mais alto, e me deixou sozinho com uma máquina de escrever e uma sensação de desamparo pulsando dentro do peito.
Ao sair do apartamento, me abraçou mais uma vez e me pediu desculpas. Não respondi, estava ocupado demais destruindo os planos que havia feito e que agora eram desnecessários. Caminhei até o fim do corredor com uma espécie de leveza, como se flutuasse sobre o carpete encardido que cobria o chão de concreto. Deslizei pelas escadas, eu não estava lá.
No caminho para casa, instintivamente entrei no bar o qual frequentava religiosamente há dois anos. Meus cotovelos buscaram instintivamente o balcão manchado e com cheiro de cerveja. Fui atendido em seguida.

- E então, o que vai ser hoje?

Por um instante eu quis saber a resposta, quis ter a certeza de que ainda haveria alguma coisa hoje, e talvez até existisse um amanhã, depois que eu dormisse e acordasse. Mas acreditar em que? Esperar o que, se nada mais era o que tinha sido, se num de repente tudo havia deixado de ser?
Hoje? Não sei, meu amigo. Não to pra responder. A gente decide isso outra hora.

Fragmentos de Adriana - Parte II

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Azeitonas & Cerejas

"Ganesha Sharanam Sharanam Ganesha
Gan Gan Ganapati Sharanam Ganesha
Jay Ganesha Jaya Jaya Gananatha
Ganesha Sharanam Sharanam Ganesha
Gan Gan Ganapatiye Namaha
Ganesha Sharanam Sharanam Ganesha"


- Entende? - ela me perguntou, e tirou do copo de gim com tônica o palito com a azeitona espetada, e ergueu à altura dos olhos - Isso não é uma cereja. É a nêmesis perfeita da cereja. Cereja é doce. Cereja é vermelha, é bonitinha e todo mundo gosta. Adoça a boca, adoça a vida e é macia de morder. E eu não sou uma cereja, não levo jeito pra ser. Azeitona, baby. Amarga, azeda. Um tom de verde mofado, caroço duro de roer. Porque eu amargurei, boy. A vida me azedou. Não como vinho, mas sim como vinagre. Eu sou azeda e caroçuda. Calejada, garoto. Cerejas não existem no mundo real. Elas apodrecem em contato com o oxigênio putrefato que a cidade exala. Uma vez eu era uma cereja. Eu já usei vestidinho comprido e meu quarto era branco e rosa. Tá rindo do que, palhaço? - E bebeu o gim em um gole só - Eu já fui doce. Eu já deixei açúcar na boca que me beijou, eu já tive esperança, já tive sonho. Eu já fui vermelhinha e macia de morder, querido. Mas me diz, garoto, qual é a cereja que sobrevive a todo esse lixo, gás carbônico, gonorréia, álcool e hipocrisia que tem na rua? Darwin explicou tudo, mas esqueceu das cerejas. Vai ver ele não sabia. Porque agora eu sou uma azeitona. E sabe por que? Eu segui o que Darwin disse. Eu me adaptei. A cidade fez isso comigo, garoto. A cidade me corrompeu, tirou de mim tudo que era doce, tirou minha maciez. Agora eu cheiro a cerveja morna e cigarro. A conhaque, gim e uísque vagabundo. E por que, garoto? Por que isso aconteceu comigo? De repente a gente abre os olhos e mudou, endureceu, azedou... E nunca mais volta a ser doce. Eu sonho toda noite com tudo que eu era. Olha minhas tatuagens: Cereja e azeitona. Todo mundo sonha em ser cereja, né? Tu é uma cereja, criança. Olha pra ti... Pele branquinha, lisinha, cabelo cortado. Nunca fumou maconha, né? Nem cigarro, nem mentolado. Só cerveja e uísque importado. Cereja vermelhinha, e eu to louca pra te morder, pra sentir teu doce em mim. Não ri, garoto, ou tu acha que eu não sei que tu só sentou do meu lado porque a noite tá acabando e tu quer comer uma vagabunda? Eu dou pra ti, não te preocupa. Eu dou e não vou ficar te pentelhando, não quero teu telefone, não quero nem saber teu nome. Eu transo bem, carinha. Não precisa nem me levar pra casa depois. Eu gosto mais de cerejas, mas sabe por que eu só bebo gim com azeitona? Eu gosto de fazer a azeitona se sentir amada, desejada. A azeitona se sente importante por estar dando prazer a alguém. Deixa eu ser tua azeitona, boy. Deixa eu ser tua azeitona e fingir que sou tua cereja.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Apartamento 492




Chorei ao mesmo tempo em que começou a chover. Éramos, eu e ela, a chuva, uma entidade só. Éramos uma manifestação da dor que nos tomava naquele momento, e compartilhávamos nosso segredo numa solidão a dois, longe de tudo mais que chovia, chorava e morria naquela cidade que outrora pulsava viva em órgãos de concreto e corria como sangue por entre as veias de asfalto, mas que agora calava-se, como morta, em respeito a mim e à chuva.
Andei por todas as ruas da cidade, acompanhado dela, deixando minha alma em cada esquina que dobrava. Cruzei com a saudade, cruzei com a morte, cruzei com a loucura e com o desespero do embrião urbano. Em pouco tempo, já encharcado pela chuva incessante, cheguei ao n° 3584. Subi até o quarto andar e deixei-me cair ao chõ em frente ao 492, sem ter coragem de bater àquela porta que já havia sido meu refúgio tantas vezes, mas que agora estava permanentemente trancada. Pelo lado de dentro.
Minha visita não se estendeu por muito longe, pois logo ouvi vozes na escada. Uma feminina, conhecida, outra masculina. Desci pelo lado oposto e arremessei meu guarda-chuva ao alto assim que ganhei a rua. Caminhei por mais de uma hora sem destino certo, sem idéia nenhuma. O vento frio atravessava meu casaco molhado e doía como se agulhas estivessem sendo cravadas na minha carne. Meus pés estavam gelados, minha cabeça latejava.
parei sob uma luminária na esquina e tirei meu cigarros do bolso interno da jaqueta. Inútil, a chuva e o vento sequer permitiam que eu acendesse meu maldito cigarro. Sem mais forças, sentei à calçada e chorei. Solucei. Esmurrei o asfalto com o punho cerrado, e vi meu sangue se misturar à poça d'água que se formara aos meus pés. Afastando o cabelo do rosto, mirei aquele jovem que me encarava. Olhei em seus olhos o mais fundo que pude. Levantei e joguei o maço de cigarros no lixo. Achei o caminho de casa, tomei um banho quente e dormi por dois dias ininterruptos. Nunca mais voltei ao 492 do número 3584. Nunca mais fumei. Nunca mais me perdi na chuva. Nunca mais esmurrei o asfalto. Nunca mais vi aqueles olhos verdes refletidos na água.
Mas até hoje, toda vez que fecho os olhos, posso ouvir um par de vozes subindo a escada.

- poema sem título -

Discuto em silêncio as possíveis razões
E providências que, sozinho, posso tomar.
Para lidar com estas tais situações
Em que o coração já não bate, só faz apanhar.

Com meu dedo na areia vou traçando o destino,
Desejo tudo aquilo que vem para o bem.
Deixei para trás aquele jovem menino
Que um dia sonhou em ir mais além.

Cadê meus amigos?
Não estão comigo
E não sei também se em outra parte estão.

Vou seguir meu caminho
e continuar sozinho,
Acompanhado somente do meu violão.

domingo, 16 de janeiro de 2011

As Fontes de Montbéliard


Madalena chorava segurando sua água mineral com limão. O trem para Languedoc partira há 15 minutos.
Madalena sabia que era a melhor saída. Quando se chega num ponto tal como aquele, o melhor era recomeçar. Já não era mais moça, bem sabia. O tempo de vida já apostava sua assinatura na face outrora macia da mulher no vestido verde-água, aquela que tinha maxilares longos e fugidios e olhos de um azul líquido penetrante, assim como uma beleza feminina que amadureceu e se cristalizou com a idade.
Para trás, decidira deixar toda sua vida e um passado inglório. Um amor de perdição, um emprego medíocre, vícios e rotinas das quais ousara se libertar agora, aos sopro das brisas dos quarenta anos.
Chorava, e por seu rosto corriam as lágrimas bailarinas, traçando, lépidas, os caminhos entre o rosto sulcado da jovem senhora.
Chorava, e se sentia capaz de , como Griselda, fazer brotar fontes quase tão belas como as de Montbélard, nas quais poderia banhar-se para tirar de seu corpo e espírito toda a tristeza e inconformidade.
O trem já fazia vapores por entre as colinas do vale do Maine, e Madalena, que não tivera coragem de embarcar em busca de uma nova vida, que não conseguira se libertar de seus grilhões, chorava sentada no banco de madeira da estação, por entre centenas de passantes apressados, que não tinham tempo de notar a beleza nos olhos de um azul líquido penetrante, tampouco tinham interesse em Madalena, Griselda ou as fontes de Montbéliard.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Acabou o Café

(Texto de encerramento do "Entre Dois Cafés")

"
Deixa a caneta ao lado do caderno de folhas sem pautas.
Diante dele, páginas e mais páginas de suas histórias contadas com tinta, vômito, suor, saliva e sangue.
Diante dele, todo o universo que criara quando o real já não era mais suportável.
Diante dele, toda uma vida que vivera à parte, acompanhando por dezenas de olhos curiosos, que admiravam suas conquistas e repudiavam seus fracassos, ou o contrário.

Apóia a mão na mesa, enquanto tira o óculos de aro fino com a outra.
Leva aos lábios a xícara manchada, e toma o último gole do café já frio.
Encosta as costas na cadeira e, de olhos fechados, inclina a cabeça pra cima, cruzando os braços por trás da nuca.


Suspira.


'Minha vida é um livro aberto... Mas não é um best seller'


Acabou."

Clarice

(Um dos meus textos favoritos do "Entre Dois Cafés", aparece aqui novamente com algumas alterações em relação ao original)


Clarice me trocou por uma vida sem riscos. Era isso que dizia o bilhete preso na geladeira quando eu acordei e não encontrei nem Clarice, nem nenhum vestígio de sua passagem pela minha casa.
Clarice cansou. Das brigas, das mudanças, dos perigos, das metáforas, das oscilações. Clarice cansou de tudo que eu tinha a lhe oferecer.
Clarice levou as roupas, o perfume, o disco do Velvet, o Fernando Pessoa e a minha vontade de acordar vivo. Clarice queria mais.
Clarice acordou e levantou sem olhar pra mim, porque talvez aquela última visão dos meus olhos fechados a impedissem de fazer o que não sabia se queria.
Não tomou café, nem tocou no pão.
Clarice não foi sentimental, não foi rancorosa, não foi dramática nem vingativa. No bilhete, que era a única prova que eu tinha que de fato ela existira, dizia que precisava de novidades, e que eu já não era um ideal de felicidade pra ela.
Clarice tinha largado a bebida, o pó, o cigarro e o instinto de auto-indiferença. Eu era o laço que a prendia a tudo isso, e ela precisava desatar esse nó para seguir em frente.
Clarice queria teatro, cinema europeu, literatura cult, bossa nova e um amante beatnik. Eu era, no máximo, beatlemaníaco.
Clarice foi pra Porto Alegre, sempre dizia que a vida metropolitana era o que lhe fazia sonhar, e eu continuei na periferia da cidade pequena.
Clarice arrumou emprego, cortou o cabelo e voltou pra faculdade. De quartas a domingos ouvia jazz no Paxton Cafe, mas frequentemente bebia gim e fumava um cigarro de filtro branco.
Teria recaídas de mim também?
Clarice me ligou uma vez, depois de um ano. Estava calma. Não estava saudosa, nem melancólica, tampouco se abalou quando implorei por-favor-volte-sinto-sua-falta-penso-em-você-todo-dia-seu-cheiro-ainda-está-em-meus-lençóis.
Clarice disse que estava feliz, embora sua vida estivesse calma demais. ligou para dizer que tinha tomado a decisão certa naquela manhã de agosto e que eu deveria tocar a vida em frente.
Clarice tocou em minhas feridas, mandou um beijo-toma-cuidado e desligou o telefone.
Fui dormir mais tarde, naquela noite. Não doía Clarice ter me deixado, ou eu não ter esquecido, ou ela não querer voltar, ou ela estar feliz. Doía saber que ela estava certa em cada afirmação, e ser obrigado a concordar com as opiniões que tanto nos fizeram brigar.

Mas Clarice estava certa.

Mantive Clarice viva na minha casa. Dois pratos na mesa, dois travesseiros na cama, tampa do vaso abaixada, toalhas macias, boa noite meu anjo, bom dia amor. Beijei Clarice em pensamento todas as noites. Fiz amor com sua lembrança e chorei no seu colo ausente. Não mudei os móveis de lugar, não troquei nada dentro de casa. Até a chave eu guardava no mesmo lugar.
Levei a vida nessa solidão a dois por longos três anos, sem cogitar a possibilidade de deixar Clarice.
Um dia, enfim, acordei com Clarice ao meu lado. Mesmo parecendo impossível, era ela. Diferente, mas ela. Clarice. Para afastar a possibilidade de ilusão-sonho-delírio, toquei de leve seu rosto. Carne quente.
Levantei com cuidado. Não queria acorda-la. Preparei seu café da manhã, sempre zelando pelo silêncio. Ao meu beijo, Clarice despertou. Sorriu. Sorri. Não falou. Não falei. Não perguntei. Não chorei. Não tentei entender. Não quis explicações.

Clarice havia voltado.

Da Entrega

Entregou-se a ele como se fosse flor recém colhida.

Há horas já não pensava mais com a cabeça. Os olhos, ágeis e silenciosos como dois larápios noturnos, tentando prever qual seria o local do próximo toque, percorriam o caminho que as mãos traçavam naquela pele suada.

As mãos... Manipulavam-na, fazendo-a de marionete dos instintos. Mais do que a possuir, ele a amou. Amou-a em cada instante de imoralidade. Amou-a com a boca, mãos, pernas, pés e dedos. Amou-a mais com os olhos do que com o próprio membro.

Ele não se importava. Tinha os desejos dela em seu domínio, e seus dedos tocavam, no corpo dela, a música ao som da qual dançavam aquela sinfonia imoral, marcada pelo contato de carnes.

Sinfonia que transcorreu entre o andante e o adágio, atingindo o allegro em uma explosão de suor, saliva e líquidos de ambos, deixando como resultado dois corpos arfando ao som do réquiem póstumo dedicado aos que morrem de amor, largados sobre os lençóis manchados e o pudor esquecido.

Da Loucura ou Da Libertação

(De "Entre Dois Cafés")


Acomodados na penumbra do prédio secular que há anos funcionava como um bar, os dois refugiavam-se, entre cigarros e xícaras de café forte, do sol e das pessoas que ardiam do lado de fora, lá, na rua.
Um deles, o que parecia ser o mais velho, parecia não dormir há um bom tempo. Tinha barba por fazer e o rosto cavado por olheiras. O outro, mais jovem, fumava e bebia seu café incessantemente.

Não se conheciam. Na verdade, tinham a impressão de que apenas não tinham se visto ainda, embora tivessem se reconhecido mutuamente na primeira vez em que se viram.

Sem falar nada, o mais velho sentou-se à mesa na qual o outro estava, e pediu mais um cinzeiro e outra jarra de café. O outro não se manifestou. Sabia que algo estava por acontecer.

- Tomar café quente em pleno verão parece loucura, mas é a melhor sensação do mundo. Não acha?
- Nunca pensei sobre isso. Apenas tomo.
- E não acha bom?
- Acho, mas não sei se é a melhor coisa do mundo.
- Eu sei. E sabe por que? Porque é uma afronta. Todo mundo bebe coca cola, cerveja, água gelada. Todos fogem do calor. O café é um grito de oposição.
- Tomar café é andar na contramão.
- É.

[...]

- Sabe que todo ato de loucura desperta um pouco de inveja nas pessoas?
- Sério?
- Acho que sim. Em mim, pelo menos, desperta.
- Hum...
- Eu ainda lembro do cara que dançava em cima do prédio.
- Como?
- Numa noite de tempestade. Parece cena de ficção, eu nem acreditaria se alguém me contasse. Mas ninguém me contou. Eu mesmo vi.
- Viu o que?
- Ele estava em cima do prédio de medicina, na universidade. Dançava no parapeito.
- Quem era?
- Alguém que desafiou o mundo. Andava pela beirada do telhado, pulando e rodopiando ao sabor do vento e ao som de uma música que só ele ouvia.
- Sujeito corajoso.
- Não. A coragem requer concentração, e acaba retesando a musculatura. Ele estava relaxado, leve, quase imperceptível.
- Devia ser louco, então.
- Também pensei, mas a loucura não é tão precisa. Ele tinha domínio sobre aquilo, mesmo sem parecer.
- O que era aquilo, então?
- Liberdade.

[...]

- E sabe, eu parei e fiquei olhando. Todo mundo ficou.
- Curiosidade mórbida.
- Não, era inveja mesmo.
- De arriscar a vida?
- De ser feliz. Pra ele, não importava qual seria o destino após o próximo passo. Ele desfrutava de cada rodopio, sem se importar com nada. Entende isso?
- Acho que não.
- É, isso é normal. Eu também não entendi de começo. Levou tempo pra perceber que liberdade é não ter que se preocupar com o próximo passo, e que felicidade é não ter nada a perder.
- E o que aconteceu com ele?
- Não sei. Fui embora antes de ver. Larguei meu trabalho, a faculdade. Deixei uma carta pra minha mãe e outra pro meu irmão. Arrumei meu quarto, alimentei meu gato e saí. Caminhei um tanto, andei outro tanto de carona. Pra qualquer direção. Eu achava que não sabia onde estava indo, até que entrei aqui.
- Agora sabe?
- Acho que sim.

(De "Entre Dois Cafés")

Sirva-me um conhaque, garoto, porque a noite é fria e as horas são longas, e chega um momento em que não há coberta, nem lareira, nem jaqueta nem incêndio que aqueça um velho coração.... Só outro coração é capaz de fazê-lo.
Mas sirva-me o conhaque, garoto, e escuta minhas histórias. Ou finge que o faz.
Apenas faça-me sentir como se o que eu tenho a dizer, todas as minhas batalhas, conquistas, todas as minhas histórias de vida, fossem importantes ou, ao menos, interessantes para alguém.
Sirva o conhaque, garoto, que dinheiro eu tenho. Posso pagar a garrafa toda, se quiser. Posso comprar todas as bebidas desse bar, garoto... Posso pagar jantares, viagens, mulheres, só não posso pagar por um amigo.
Por isso, me serve o conhaque, garoto. Não faço questão de beber, já parei há tempos, mas preciso tanto desse balcão, e de alguém, mesmo um desconhecido, a quem eu possa perguntar sobre política, se o Grêmio ganhou ou se as estradas serão reformadas. Não que eu me importe com política, torça pro Grêmio ou tenha carro... Não. Quero só fazer de conta que isso é tudo o que me preocupa agora: a política, o Grêmio e as estradas.
Então me dá logo esse conhaque, garoto, e liga a televisão em qualquer coisa pra eu fingir que me interesso.

Niguém esperava que flores nascessem em cemitérios

(De "Entre Dois Cafés")


Niguém esperava que flores nascessem em cemitérios.

"Segura
minha vida em tuas mãos frágeis"


Beleza suave, sincera...

"Não deixa cair"

Não sabia mais como fazer aquilo... Amar era fácil. Estava aprendendo a ser amada.

"Preciso de um colo que ninguém dá, mas tudo bem..." - CFA

A relutância da aceitação, tanto quanto o medo inicial, eram fundamentados pela descrença de que qualquer exemplo de felicidade real pudesse entrar no seu raio de alcance.

"Deixa o medo, então, passar... Deixa eu ser o que você sonhar!" - Plano Z

Afinal, já havia vivido... e quase morrido. Sabia o que era gritar e não ser ouvida, estender a mão e segurar o vazio. Já precisara de ajuda e não teve ninguém ao seu lado.

"Se a tua fraqueza mostra os limites da tua sorte, esquece de tudo e aprende a ser forte!" - Plano Z

Recorreu a si mesma, e encontrou forças pra seguir. Engolia a dor, mastigava o sofrimento... Transbordava orgulho! Jurou que ninguém alcançaria seus medos, e não seria ferida outra vez.

"Little darling, it's been a long, cold, lonely winter [...] Little darling, the smiles are returning to the faces... Here comes the sun!" - The Beatles

Traziam a mesma história, as mesmas lembranças... O mesmo desejo de viver e ser vivido. Encontraram refúgio um no outro, e puderam mostrar suas limitações e potenciais. Engraçado como a fraqueza de um encontrava sua compensação na positividade do outro. Mas era assim, eram o número certo.

"Surgiu inesperadamente, ofertando ouro a quem a dor tinha empobrecido." - Ramona Reichert

Assim nascem as flores nas sepulturas: De onde todos esperam apenas dor, brota esperança... Afinal, a morte não é definitiva. A cada vida que se cessava, nascia outra. E aquela que se acabara não deixava apenas dor... Deixava lições a serem seguidas e recordações a serem guardas.
As boas, apenas... As ruins não fazem falta.

"And in the end, the love you take is equal to the love you make!" - The Beatles


"A cinza não se sente desprezada
apenas por não arder mais,
Pois sabe que já aqueceu alguém que tremia de frio"

(De "Entre Dois Cafés")


E eram primaveras em teus olhos e verões em teu corpo. Agora resta apenas o inverno em tua alma. A brisa de outono que costumava soprar tornou-se vento frio que, enquanto corta o ar, entre assovios de agonia, corta também a pele já castigada pelo tempo e pelo infortúnio.
Por tempos e tempos tentei entender, inclusive me questionei. Perguntei de que eram feitas tuas lágrimas. Descobri, então, que tais lágrimas sequer existiam. Em tua concepção, chorar era sinônimo de fraqueza e, se fizesse isso, estaria abrindo os portões para teus inimigos.
Mal sabias tu que teu pranto acalenta tuas dores, como a chuva revigora os gerânios há tempos abandonados no jardim. Chorar não é fraqueza, é um alívio sincero da alma que pede socorro em silêncio.
Em teu olhar, outrora radiante e harmonioso, só se via os vestígios daquele "mais-que-amar" sem ser amado, que arrancara de dentro de ti a fragilidade que tu nem lembravas possuir. Porém, não foi exclusivamente mau... Ao te entregar de corpo e alma, coração e mente, sentimentos e pensamentos, colocaste teu destino à mercê da mão que te afagava. Te jogaste sem olhar pra baixo, esperando o abraço que te segurasse... Na queda, te deparaste com o vazio, o mesmo vazio daquele coração, no qual tu acreditou estar... E a boca à qual tu recorreste? Era, tua boca na dele, a manifestação carnal do abstrato da paixão. E agora? Agora teu beijo é em boca fria e sem dentes, de lábios moles que não expressam mais que indiferença.


(...)


Teu corpo, inerte, repousa à sombra das videiras. A não ser que tenha o gosto do sangue derramado da jugular de teu assassino, nenhum vinho vai te tirar desse torpor. Nem o mais forte, nem o mais encorpado... Nenhum tornará rubras tuas faces frias...

Dos mil amores que viveste, mil amores te feriram. Mas de que te adianta abster-se da vida? Não sabes que a sorte, animal traiçoeiro, se esconde de ti quando tu a procuras, e te salta ao pescoço quando tu te descuidas? Aquele que busca seu tesouro está longe de encontrá-lo. Quando desiste de procurar, tropeça nele.


(...)


"E eram primaveras em teus olhos e verões em teu corpo. Agora o outono sibilante te cobre o coração com folhas mortas, deixando os galhos limpos para as folhas novas, que nascem depois de todo inverno. É um ciclo... A vida que só é possível mediante a morte."





"Eu sou o alecrim, e trago a recordação"





.

(De "Entre Dois Cafés")


Alimentava a tristeza como quem alimenta os pombos no parque, jogando as migalhas de sua alma ao chão. Chorava sutilmente, embora seus olhos jamais perdessem a autoridade. Chorava não pelos olhos, mas pelo coração. De seu peito frágil brotavam as lágrimas, que rolavam até o chão, onde se reuniam em uma poça de mágoas, a qual servia como um espelho que mostrava os sentimentos. Fitava a poça com frieza, mas via refletido o desespero em seus próprios olhos
As aves brigavam pelos pedaços da alma estilhaçada, como se fossem aves de rapina sobre sua presa, enquanto aquele rapaz observava tudo atentamente. Havia chegado ali a passos leves, como se fosse apenas alguém de passagem... Ali estabeleceu-se e ficou a contemplar a cena, sentindo uma revolta muda. Cansado de assistir em silêncio, saiu do lugarzinho onde estivera oculto, e arremessou-se diante da moça, que sequer havia notado sua presença até então. Assustados com o movimento brusco, os pássaros lançaram-se ao céu, e a moça pôde ver, então, sua alma espalhada. Embora houvesse sido atacada pela tristeza, permanecia intacta. Não seria fácil juntar os pedaços e reconstruir aquela velha alegria de viver, mas ela sabia que não estaria sozinha nessa missão.

(De "Entre Dois Cafés")

"Acho que já é hora de parar de nutrir esse sentimento. Aliás, creio que deveria ter jogado tua lembrança fora quando vi que minha desgraça se abatia sobre ti com a indiferença de um vento sem força. Quando tu engatilhou tua arma de apatia e disparou contra meu coração exposto, morri pela primeira vez... Foi meu sangue que marcou tuas pegadas, e também foi com meu sangue que lavaste tuas mãos, na vã tentativa de ocultar as marcas do crime. Talvez ninguém descubra teu ato, mas carregarás o peso de meu corpo agonizante até o dia da tua morte, meu anjo... Ah, tua morte! Neste dia, quero, com esse resto de carne e ossos a que chamo de 'corpo', te segurar em meus braços e sentir teu calor. Calor, sim, pois nem na morte serás tão fria quanto foste em vida. Mas ficarei ao teu lado na vida da tua morte, como não ficaste na morte da minha vida."

Não é Bonito, Não é Poesia

(De "Entre Dois Cafés")


Pedi a quarta dose de uísque com descaso. Não tinha dinheiro nem pra pagar a terceira, mas pouco importava. Há tempos eu não ligava mais pras coisas sem importância: Dinheiro, aparência, emprego, vida, felicidade... Tudo se resumia a copos baixos com gelo dentro. Quando a bebida chegava, minha dor pedia licensa. Mentira... Minha dor doía mais a cada gole, a bebida era só uma manifestação da minha fraqueza, um refúgio pro corpo cansado e pra mente covarde.
Minhas noites eram uma repetição dos mesmos elementos: Blues, balcões, copos, gosto amargo, banheiros, gosto amargo... Eu me escondia quando o sol se mostrava. Nunca deixava a luz do dia me iluminar, pra não sentir a vergonha de me ver.

Os dias eram todos iguais.
As lembranças eram todas iguais.
As noites eram todas iguais.
As dores eram todas iguais.

Nada perturbava minha morte.

Sem Título




"E toda aquela certeza, aquela segurança de mulher que
seus olhos deixavam ver, parecia querer sair gritando lá de dentro, e deixar o corpo para aquela menina doce que vivia adormecida lá dentro, oprimida pelo peso da melancolia.
A auto-confiança iria embora, e daria espaço àquele medo infantil... medo do escuro, de ficar sozinha... O aprendizado que a vida lhe trouxera devolveria seu lugar à inocência que havia se ausentado, mas não deixado de existir. Seria, outra vez, menina alegre, e a segurança que lhe fosse necessária não precisaria vir de outro lugar, senão apenas daquela mão que seguraria na sua..."

Da Solidão

(De "Entre Dois Cafés")


Parece que todos a querem, quando se pode escolher,
E a amaldiçoam, quando não resta outra opção.

Murmúrios

(De "Entre Dois Cafés")

Quando a noite cai, traz junto um manto de mistério,
E o silêncio parece se estabelecer...
Mas apenas para as mentes fechadas e para os corações frios.
Pra mim, estabelece-se uma sinfonia, o diálogo dos abstratos.
Posso ouvir o lamento do escuro,
O choro do vento, as lamúrias da chuva que é obrigada a cair...
Posso ouvir o tempo resmungar, reclamando seu direito de descansar um pouco

Então, alguém fala algo sobre o silêncio que a noite traz...
Tolos! Não percebem que é durante a noite que os sentimentos gritam,
As dores berram e os sem voz finalmente podem se expressar...

Que a noite caia, e traga a libertação.

Dos Devaneios II


(De "Entre Dois Cafés")

"Enquanto todos se entregam ao sono,
prefiro ficar acordado.
O silêncio que parece mortal
Me ajuda a pensar sossegado.
E vejo que, em meio a um milhão de demônios perfeitos,
Sou apenas um anjo que vive errado..."

Dos Devaneios I

(De "Entre Dois Cafés")

Do mortífero veneno que me ofertas em taça de cristal, sorvo generosos goles, lambendo os lábios após cada um. Não hei de desperdiçar uma gota sequer da morte que tua mão me alcança, e ainda agradeço-te efusivamente pelo alívio mortal que me trazes. Alívio sim pois, minutos após a ingestão, a substância nociva embrenhar-se-á em minhas entranhas, queimará como a chama que em mim apagou-se, consumirá meu ser até que não sobre mais que retalhos do corpo, para que iguale-se à alma. Depois da agonia, talvez o tão esperado gozo, resultante do último espasmo de vida que havia em mim. Após isso, apenas deixar os olhos fecharem-se e entregar-me à eternidade...

Dia Nublado

(De "Entre Dois Cafés")

Acordei hoje e o dia estava nublado. Quando fui para a rua, vi o sol radiante que iluminava tudo, menos o local onde eu estava. Dei um passo pra frente, a luz se afastou. Fui pra trás, a luz fugiu outra vez. Os raios de sol insistiam em não me iluminar...
Por onde eu passava, a paisagem adquiria uma cor fria, entre tons cinzas e azulados. Enquanto isso, o mundo ao redor de mim estava repleto das cores mais intensas que eu já vira. As pessoas estranhavam o fato de eu não ter cor, e parecer repelir qualquer tipo de luminosidade. Isso mexia com elas. "Onde já se viu, ficar preto-e-branco num dia lindo como esses?''. Eu não sei, simplesmente acordei assim.
Passei o dia assim, nublado. Nuvens na minha cabeça ameaçavam chover, mas não choviam. Talvez para não me dar o prazer de um arco-íris.
Fui dormir com as minhas nuvens, torcendo para acordar com o sol na manhã seguinte.

Cândida e sua noite insone

Ela tremia.
Uma das mãos segurava uma xícara branca que derramava café a cada solavanco que o corpo dava.
A outra segurava um cigarro mentolado, cuja fumaça traçava curiosos desenhos, seguindo o movimento do mão trêmula.
Já passado das dez horas da noite, ela maldizia Neruda, a quem lia sem conseguir achar sentido naquelas poesias sem rimas.
Buscava um conforto em algum lugar, longe de si mesma. O telefone repousava fora do gancho, na ânsia de evitar que alguém ligasse e a lembrasse de que ela ainda era ela.
Naquele momento, esquecera seu nome, sua vida, seus amores e dores. Fosse Sílvia, fosse Cláudia, fosse Rita, por que não? Seria todas elas, loiras ruivas, morenas. Branca-negra-índia-japonesa. Fosse ela, naquele momento, uma fórmula matemática das combinações possíveis entre formas/formatos/personalidades.
Fosse o que fosse. Naquele momento, café em uma mão e cigarro na outra, longe de todos, só não queria ser ela própria.