segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Fragmentos de Adriana - Parte III

No bar, todos já comentavam sobre meus encontros com Clarice, todas as noites. Chegávamos, um sempre esperando o outro, e passávamos a noite a conversar. Com o tempo, passei a prestar cada vez mais atenção em seus olhos castanhos, seus cabelos pretos cortados acima do ombro e seu sorriso grande. Após horas, já madrugada adentro, Clarice ia embora e eu continuava bebendo até que o bar fechasse. Sendo assim, niguém estranhou quando, de repente, passamos a ir embora juntos. Nos braços de Clarice encontrei um mundo diferente, uma realidade talvez diferente daquela que eu teria imaginado em meus devaneios ébrios.
Clarice era uma criança querendo desvendar o mundo, enquanto Adriana era uma mulher que partira em busca de mais. Clarice sonhava alto, fazia pose. Bebia pouco e não compartilhava os cigarros que eu fumava enquanto ela me ouvia falar sobre Lou Reed, Nietzsche ou a fossa ilíaca de Álvarez de Azevedo. Absorvia tudo com seus imensos olhos castanhos, que pareciam querer me engolir de vez em quando.

- Só pão e leite? - Me perguntava
- Um de cada por dia - fechava os olhos e disparava o gatilho, sentindo todo meu aparelho respiratório arder - Mas frequentemente ele abdicava disso pra poder comprar livros. Vai?
- Não.

Clarice nunca ia. Nem com pó, nem com ácido, nem com erva. Ia comigo, quando depois de falar, recitar, compor sonetos em homenagem ao seus malditos olhos castanhos, partia pra cima dela como um animal durante o ataque, e ali, onde estivesse, tinha seu corpo de mulher em recém formação. Quando seu rosto de menina se encrispava em um orgasmo discreto, sentia falta de Adriana e suas unhas na minha carne, sua explosão de malícia sobre mim. E quando deitava ao meu lado, eu procurava o lado oposto, onde poderia fingir que não havia ninguém ao meu lado, que minha cama, meu sofá, meu tapete, minha cozinha, meu corredor, meu banheiro ou meu elevador continuavam tão vazios como quando Adriana foi embora.
Com o passar do tempo, cada vez mais Clarice conquistava minha intimidade, e cada vez mais via vestígios de Adriana em minha vida. Não precisou muito para ligar os pontos e, com aquela dor de quem descobre um segredo ruim, ficava cara a cara com a realidade.

Dos diários de Clarice:

Duro abrir os olhos e ver que aquilo em que depositamos nossa devoção simplesmente não corresponde à expectativa que tivemos. Eu não faço parte da vida dele. É como um parafuso que, por ser tão pequeno, não dá sustentabilidade à peça. Deus, o que eu fiz com a minha vida? Eu que queria tudo, e o que eu tinha era ao mesmo tempo tão pouco e tão necessário, de repente tenho tão muito ao mesmo tempo em que recebo tão menos daquilo que preciso.
Olho para trás e vejo o passado. Sinto, com dor, que errei. Talvez tenha sido necessário para que eu pudesse saber quem sou, o que sou. Hoje eu sei a que eu pertenço. Junto minhas mãos ao peito enquanto ele dorme ao meu lado, e faço minhas orações e choro baixinho, imaginando se meu lugar estará ainda guardado caso eu decida voltar. Penso no meu amor, e tudo que desejo é que ele não tenha feito o que este ao meu lado faz noite após noite, tentando enfiar um amor fracassado entre as pernas de alguém que não se define.
Mas sei que não posso aguentar muito mais tempo. Ocupo o lugar de um fantasma que se chama Adriana, que ele chama agora enquanto dorme. Sei que sou um fantasma também. Temo voltar. Temo não ser bem recebida. Temo não encontrar aquele amor sincero, puro e tão bonito que ele tinha por mim. E explicar o que? Dizer o que? Não se pode simplesmente voltar e fingir que nada aconteceu. Também não se pode continuar vagando a esmo quando se sabe qual é o lugar certo.


Acordei naquela manhã e Clarice havia sumido da minha vida com a mesma suavidade com a qual havia aparecido. Questão de tempo até que apareça outra, pensei. Meu café da manhã foi no único pub da cidade que permanecia aberto até aquela hora. Um café preto e vinte marlboros. Minha cabeça ainda doía da última bebedeira so som do velho Johnny Cash, e o silêncio do bar valia mais que ouro pra mim naquela hora.
"E Clarice?", vocês devem se perguntar. Não sei. Foi embora, assim como Cristina, Fabíola, Amanda e toda e qualquer outra mulher, inclusive aquelas cujo nome eu sequer lembro, que cruzaram meu destino nesses anos que se passaram desde que Adriana foi embora. Talvez cada uma delas merecesse uma história, ou uma canção. Nunca toquei ou escrevi para nenhuma delas. Vivi-as intensamente, e fiz de cada uma delas um pequeno pedaço da minha destruição.

4 comentários:

  1. Li Fragmentos de Adriana - Parte I, II e III. Ficou maravilhoso, amei ler. Aliás, li ao som de Gregory And The Hawk porque achei que rolou uma sintonia com as músicas e teus textos,rs.

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  2. Não vejo a hora de ver a parte IV. Como acaba, Nei? (acho que eu imagino.. hehehe)

    beijo
    =*

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  3. Não importa como seja, vai ser ótimo como tudo que tu escreve.

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