quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Fragmentos de Adriana - Parte II

(para ler ao som de "A Quick One While He's Away" - The Who)


2.1 - Queda

Muitos poderiam afirmar que minha vida mudou no momento em que Adriana partiu em busca de algo maior que eu, maior que ela própria. Não acredito nisso. Embora nem eu mesmo possa dizer com certeza, acho mais provável que os dias seguintes tenham sido um período de transmutação. Eu fui de tudo e fui tão pouco... Longe do tempo e da razão, eu buscava algo em que acreditar por algumas horas, ao menos. Mas no que podemos acreditar, na cidade?
No santuário de concreto e metal, gargantas secas engoliam a fuligem que caía como neve das nuvens negras de fumaça. Longe do mar, esperanças eram ancoradas no fundo daquele oceano de asfalto.
É estranho, eu sei, mas consequências já não me importavam mais. Mergulhei na destruição e na irresponsabilidade logo na primeira semana. Dos vícios, não poupei nenhum. Não escolhi os menos perigosos. Noite após noite, os bares eram meu reduto, onde eu me encontrava no meio de gente que não me conhecia, nem fazia questão. Entretanto, todos sabiam. Era eu passar e perceber algo estranho nos rostos, uma ponta de pena, talvez deboche.
Adriana me deixara um legado. A sina de ser desprezado como um cão por pessoas de qualquer tipo. Esqueci o nome de Adriana alguns dias depois. Mudei minha casa, mudei minhas roupas, mudei minha vida. Antes de dormir, me sentia apagado. Chorava sem lembrar de quem.



2.2 - Remédio Amargo

Pedi a quarta dose de uísque com descaso (com já havia feito tantas vezes antes). O bar era um ambiente obscuro. Vermelho e marrom predominavam naquele cômodo enfumaçado. Seis ou sete mesinhas redondas com cinco lugares estavam distribuídas ao longo da parede coberta por quinquilharias de bandas e pôsteres vintage. Escolhi o lugar mais afastado para sentar, onde podia ver os olhos tristes de uma pin up pregada na parede. Vestia um corpete vermelho com meias compridas pretas. Tinha um cigarro na mão e algo que me chamou a atenção: Seu olhar era triste. De todas as pin ups espalhadas pelo bar, aquela era a única que não tinha um rosto sensual. Apoiando o o queixo no joelho direito, havia tristeza em seus olhos. Simpatizei com ela. Chamei-a carinhosamente de Joana.
Era madrugada, e a garotada alternativa infestava o bar. Menininhas gostosas com cabelo esquisito, rapazes mal saídos das fraldas fazendo pose de intelectual. Ah, aquela juventude da minha idade era tão diferente de mim. Eram cerejas, ainda. Eu já era azeitona, apesar de não ser mais que um par de anos mais velho. Enquanto todos apreciavam a arte, a música, a cultura do momento, eu me chapava e desejava que o mundo explodisse.
Já alterado pela bebida, levantei e caminhei, esbarrando no máximo de gente possível, em direção à jukebox. Trocados catados, música escolhida, voltei pro meu lugar e afundei os cotovelos na mesa. Joana continuava me olhando. Mas ao som dos primeiros acordes de Stand By Me, seus olhos já não eram os únicos que me buscavam.

"I won't cry! No, I won't
No, I won't share up a tear
just as long as you stand,
Stand by me

So darling, darling
Stand by me
Stand by me
Stand by me
Stand by me
Stand by me"

A menina em pé ao meu lado entoava a canção com sua voz de algodão e hálito de uísque e martini. Na mão, um manhattan com cereja.

- Adoro essa música. - Devia ter uns dezoito anos, dezenove no máximo.
- Música de velho, garota. - Ela riu. Sentou à minha frente sem que eu a convidasse. No instante em que curvou o corpo para sentar, avaliei aquela ninfeta na minha frente. Bundinha legal, peitinho bacana.
- Música boa não tem idade. Meu nome é Clarice. - Não pertencia àquele lugar. Era uma criança, ainda. Entrei no jogo pra ver onde dava.
- Marcos.

Drinques mais tarde, Clarice me contara um pouco a seu respeito. Viera do interior há pouco tempo, sentia-se oprimida pela mentalidade de cidade pequena. Pra trás, deixara uma vida sobre a qual não falava.

- Família?
- Não tenho.
- Namorado, marido?
- Vou buscar mais um manhattan, já volto.

Quando voltou, mudou de assunto. Perguntou de mim, falei sobre minha vida, que estava mudando algumas coisas. Perguntou de mulheres, desconversei. Era o jogo dela, poderia ser o meu também.
E na doçura da criança que partira em busca de algo maior, depositei tudo aquilo que havia sobrado de Adriana. Adriana queria mais. Para Clarice, eu era esse mais.



[CONTINUA]

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