quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Clarice

(Um dos meus textos favoritos do "Entre Dois Cafés", aparece aqui novamente com algumas alterações em relação ao original)


Clarice me trocou por uma vida sem riscos. Era isso que dizia o bilhete preso na geladeira quando eu acordei e não encontrei nem Clarice, nem nenhum vestígio de sua passagem pela minha casa.
Clarice cansou. Das brigas, das mudanças, dos perigos, das metáforas, das oscilações. Clarice cansou de tudo que eu tinha a lhe oferecer.
Clarice levou as roupas, o perfume, o disco do Velvet, o Fernando Pessoa e a minha vontade de acordar vivo. Clarice queria mais.
Clarice acordou e levantou sem olhar pra mim, porque talvez aquela última visão dos meus olhos fechados a impedissem de fazer o que não sabia se queria.
Não tomou café, nem tocou no pão.
Clarice não foi sentimental, não foi rancorosa, não foi dramática nem vingativa. No bilhete, que era a única prova que eu tinha que de fato ela existira, dizia que precisava de novidades, e que eu já não era um ideal de felicidade pra ela.
Clarice tinha largado a bebida, o pó, o cigarro e o instinto de auto-indiferença. Eu era o laço que a prendia a tudo isso, e ela precisava desatar esse nó para seguir em frente.
Clarice queria teatro, cinema europeu, literatura cult, bossa nova e um amante beatnik. Eu era, no máximo, beatlemaníaco.
Clarice foi pra Porto Alegre, sempre dizia que a vida metropolitana era o que lhe fazia sonhar, e eu continuei na periferia da cidade pequena.
Clarice arrumou emprego, cortou o cabelo e voltou pra faculdade. De quartas a domingos ouvia jazz no Paxton Cafe, mas frequentemente bebia gim e fumava um cigarro de filtro branco.
Teria recaídas de mim também?
Clarice me ligou uma vez, depois de um ano. Estava calma. Não estava saudosa, nem melancólica, tampouco se abalou quando implorei por-favor-volte-sinto-sua-falta-penso-em-você-todo-dia-seu-cheiro-ainda-está-em-meus-lençóis.
Clarice disse que estava feliz, embora sua vida estivesse calma demais. ligou para dizer que tinha tomado a decisão certa naquela manhã de agosto e que eu deveria tocar a vida em frente.
Clarice tocou em minhas feridas, mandou um beijo-toma-cuidado e desligou o telefone.
Fui dormir mais tarde, naquela noite. Não doía Clarice ter me deixado, ou eu não ter esquecido, ou ela não querer voltar, ou ela estar feliz. Doía saber que ela estava certa em cada afirmação, e ser obrigado a concordar com as opiniões que tanto nos fizeram brigar.

Mas Clarice estava certa.

Mantive Clarice viva na minha casa. Dois pratos na mesa, dois travesseiros na cama, tampa do vaso abaixada, toalhas macias, boa noite meu anjo, bom dia amor. Beijei Clarice em pensamento todas as noites. Fiz amor com sua lembrança e chorei no seu colo ausente. Não mudei os móveis de lugar, não troquei nada dentro de casa. Até a chave eu guardava no mesmo lugar.
Levei a vida nessa solidão a dois por longos três anos, sem cogitar a possibilidade de deixar Clarice.
Um dia, enfim, acordei com Clarice ao meu lado. Mesmo parecendo impossível, era ela. Diferente, mas ela. Clarice. Para afastar a possibilidade de ilusão-sonho-delírio, toquei de leve seu rosto. Carne quente.
Levantei com cuidado. Não queria acorda-la. Preparei seu café da manhã, sempre zelando pelo silêncio. Ao meu beijo, Clarice despertou. Sorriu. Sorri. Não falou. Não falei. Não perguntei. Não chorei. Não tentei entender. Não quis explicações.

Clarice havia voltado.

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